Da responsabilidade civil sobre conteúdos ofensivos na Wikipédia
O presente trabalho visa a abordar sobre a possibilidade de responsabilizar civilmente a Wikimedia Foundation sobre os eventuais conteúdos ofensivos inseridos na Wikipédia por seus colaboradores que, via de regra, são de difícil identificação, uma das principais características das chamadas obras colaborativas.
1. Introdução
Existem hoje mais de 2 milhões de colaboradores registrados na Wikipédia lusófona e uma infinidade de outros não registrados, que juntos são responsáveis pela criação de mais de 4 milhões de páginas, editadas mais de 52 milhões de vezes desde que a Wikipédia foi instalada.
Com esses números é possível ter uma dimensão da grandiosidade desse projeto, surgido, em 1994, no rastro de fortes movimentos que defendiam a produção colaborativa de obras, como o free software ou software livre, no qual, como o próprio nome já sugere, as especificidades técnicas do software deixavam de ser segredo e propriedade do seu autor e passavam a ser abertas, disponibilizadas para que qualquer pessoa pudesse sobre elas criar.
A Wikipédia foi um pouco além e levou esses ideais para a grande massa. Até então colaborava para os projetos de software livre quem era da área, mas com o surgimento da Wikipédia, qualquer pessoa, leiga ou especialista, de forma anônima ou não, pôde colaborar para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da enciclopédia.
O resultado é uma obra colaborativa, criada por milhões de pessoas que visam ao mesmo objetivo.
Dessa conjunção de ideias nascem contribuições relevantes e que acrescem a Wikipédia, outras nem tanto. E são dessas que surgem os problemas de relevância jurídica. Quando um usuário não registrado colabora ofendendo à honra de terceiros, a Wikimedia Foundation, entidade administradora da Wikipédia, responde pelos danos eventualmente causados?
A fim de responder tal indagação, foi realizada uma pesquisa documental, cujos resultados serão dispostos da seguinte maneira neste trabalho: na primeira parte, serão feitas algumas considerações sobre as obras colaborativas, conceituando-a e contextualizando seu surgimento. Na segunda parte, o trabalho focará na específica obra colaborativa Wikipédia e sobre os eventuais problemas surgidos de um projeto como esse. E, por fim, na terceira parte, o tema do presente trabalho será abordado sob à luz do Marco Civil da Internet, apontando as respostas legais aos problemas anteriormente verificados.
2. Surgimento das obras colaborativas
O Que é um Autor? , já indagava Foucault em obra de quase meio século. O filósofo, é claro, não foi o primeiro a formular tal indagação e certamente não foi e nem será o último. Em verdade, a figura do autor sempre foi objeto de teorias e questionamentos ao longo da história, discussão essa que ganha ainda mais corpo nos tempos atuais.
Isso porque o advento da internet revolucionou a forma pela qual tradicionalmente se compartilhava conhecimento, enfraquecendo o que a doutrina chama de comunicação one-to-many, centralizada na figura do emissor, e dando espaço para a comunicação many-to-many, aquela em que há muitos emissores para muito receptores, possibilitando a constante transformação dos saberes em novos conhecimentos e obras , uma das características centrais da atual sociedade da informação.
A diferença entre autor e receptor, que outrora era de mais rápida e fácil identificação, torna-se hoje mais confusa, de forma tal que em determinados casos é possível até mesmo afirmar que são um só. Esse curioso fenômeno encontra espaço nos processos interativos de criação, em que os usuários têm a possibilidade de ativamente participar da obra, ou seja, contribuir para o seu nascimento e futuras transformações , o que apenas foi viável com o surgimento das tecnologias da informação.
A tal novo modelo, Yochai Benlkler deu o nome de commons-based peer production, sistema através do qual dezenas ou até milhares de pessoas cooperam entre si para fornecer informação, conhecimento ou bens culturais sem depender de hierarquias gerenciais para coordenar esse empreendimento comum.
Com esses ideais é que nasceu, na década de 80, o movimento software livre, “baseado no princípio do compartilhamento do conhecimento e na solidariedade praticada pela inteligência coletiva conectada na rede mundial de computadores”, consolidado pela formação da Free Software Foundation, em 1984, fruto da indignação de Richard Stallman, então integrante do MIT, contra a proibição de se acessar o código fonte de um software.
O objetivo era permitir que as pessoas tivessem a liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar tais softwares. Um grande exemplo de sucesso é o Linux, primeiro dessa geração e que abriu caminhos para outros como Apache web server, Gimp, Perl, BIND e OpenOffice.org que contam com milhares de voluntários que trabalham em seu tempo livre e funcionários pagos por corporações que, apesar de não reivindicarem propriedade, se beneficiam vendendo serviços ou equipamentos associados aos softwares.
A partir do movimento software livre outros projetos colaborativos emergiram, sendo um deles o Creative Commons, projeto sem fins lucrativos, criado por Lawrence Lessing, professor da Universidade de Stanford, que objetiva desenvolver licenças públicas flexíveis que possam ser utilizadas por qualquer indivíduo ou entidade para disponibilizar suas obras intelectuais em modelo aberto possibilitando que sejam usadas pela coletividade dentro dos limites da licença.
Todos esses projetos colaborativos partem da ideia de que o processo de criação de uma obra não precisa mais ser algo restrito a um ou meia dúzia de autores que trabalham em coautoria, mas pode ser um trabalho colaborativo, com centenas ou milhares de mentes trabalhando para um projeto em comum, convidando aquele usuário/leitor a sair da sua posição passiva para assumir um lugar no plano da criação.
3. Sobre a Wikipédia
Em 1994, o norte-americano Ward Cunningham desenvolveu a primeira aplicação Wiki, o software WikiWikiWeb, e o instalou na internet no ano seguinte, disponibilizando ele próprio o código-fonte da sua criação. Seis anos depois, Jimmy Wales desenvolveu a Nupedia objetivando produzir uma enciclopédia livre, mas o projeto fracassou, até que foi apresentado a ele e a seu parceiro de edição, Larry Sanger, o método Wiki, e, assim, surgiu o que veio a ser conhecido como Wikipédia, “uma clone indireta do motor WikiWikiWeb”.A Wikipédia é uma enciclopédia online fruto do modelo colaborativo de produção, além de ser um dos mais famosos exemplos de obra colaborativa da atualidade. Em 17 anos de existência a Wikipédia já mobilizou milhões de pessoas a colaborativamente produzir conteúdo, sem a tradicional forma de organização hierárquica e investimento financeiro
É o que Tapscott e Williams chamaram de Wikinomics, nomenclatura inspirada no modelo Wiki que os autores utilizam para designar toda a cultura de colaboração em massa: “Não estamos apenas falando de criar enciclopédias e outros documentos online. Um wiki é mais do que apenas um software para permitir que várias pessoas editem sites na internet. É uma metáfora para uma nova era de colaboração e participação. ”
Na enciclopédia Wiki qualquer pessoa pode criar, alterar e editar verbetes, independentemente da idade, sexo ou falta de conhecimento sobre o assunto. Estima-se que são realizadas 10 edições por segundo em todo o planeta, segundo dados fornecidos pela Wikimedia Foundaton, entidade norte-americana sem fins lucrativos responsável pela administração desse gigante projeto.
Não há como negar, a criação e o sucesso da Wikipédia desafiaram paradigmas. Se analisada sob as visões convencionais, a Wikipédia era para ter sido um projeto fracassado, no entanto, não o foi “pondo em xeque os conceitos de autor, de titularidade, de edição e até mesmo de obra”.
4. Quem se responsabiliza pela informações inseridas na Wikipédia?
Conforme já abordado, a Wikipédia é formada pela colaboração de milhares de pessoas que constantemente criam, editam ou alteram artigos. E isso da maneira mais simples e prática, não sendo necessário qualquer identificação, embora seja possível ser um colaborador cadastrado.
Assim, todo mundo pode, anonimamente , escrever sobre qualquer assunto e em qualquer momento. Ou seja, é a fórmula ideal para o surgimento de inveracidades, desentendimentos e escritos de mau tom.
Claro que o próprio dinamismo da Wikipédia permite que tais problemas sejam solucionados, uma vez que se alguém introduz uma informação incorreta imediatamente outro poderá consertá-la e é justamente isso que ocorre na maioria das vezes. Inclusive, para minimizar esses eventuais transtornos, o site dispõe de alguns recursos, tais como: listagem das edições mais recentes, histórico geral com os números IP e nicknames/apelidos dos editores, diff (comparação das edições, permitindo o monitoramento da página), editores-sênior que são avisados sobre cada edição de determinadas páginas e quando necessário a página é excluída com aviso de vandalismo.
Mas, e se surgir caso “fora da curva”? Quem se responsabiliza já que, via de regra, não se conhece o autor?
4.1. Wikimédia Foundation como provedor de aplicações de internet - Marco Civil da Internet
Ensina Maria Helena Diniz que a responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde ou, ainda, de imposição legal
A responsabilidade extracontratual, pertinente ao assunto aqui tratado, pode derivar das mais diversas situações dentro da internet, desde envio intencional de vírus a publicação de textos ofensivos à honra. Nesse último, entra a figura dos provedores de aplicações de internet , uma vez que são eles que disponibilizam o espaço para a interação dos usuários, viabilizando a publicação de conteúdo geralmente sem controle ou filtros prévios em relação ao que é publicado.
Antes da Lei nº 12.965/2014, também conhecida como o Marco Civil da Internet, a natureza da responsabilidade do provedor de aplicações era objeto de muitos questionamentos na jurisprudência e era possível identificar basicamente três correntes: (i) o provedor é mero intermediário entre o agente do dano e a vítima, e, portanto, não se responsabilizaria pelas condutas de seus usuários; (ii) teoria da responsabilidade objetiva do provedor sob o fundamento do risco da atividade e ,em outros momentos, sob o fundamento de defeito do serviço prestado; e (iii) teoria da responsabilidade subjetiva do provedor que era defendida também sob dois fundamentos, um que a responsabilidade adviria da inércia do provedor após notificação extrajudicial e outro do não atendimento a decisão judicial que ordenasse a retirada do conteúdo.
Após o advento do Marco Civil da Internet, a matéria passou a ser prevista nos artigos 19, 20 e 21, justamente na seção “Da Responsabilidade Por Danos Decorrentes De Conteúdo Gerado Por Terceiros”. No primeiro dispositivo mencionado, a lei afirma o entendimento da corrente jurisprudencial que defendia a teoria da responsabilidade subjetiva, mas, ao mesmo tempo, afasta o fundamento de que a responsabilidade decorreria da não retirada do conteúdo após notificação extrajudicial ao prever que haverá responsabilidade somente quando o provedor for inerte após uma “ordem judicial específica”.
Sob esse entendimento legal é que, em dezembro de 2017, a ministra Nancy Andrigh, relatora no REsp 1.501.603/RN, fazendo menção ao art. 19 do Marco Civil da Internet, destacou em acórdão que “(...) provedor de aplicação torna-se responsável solidariamente com aquele que gerou o conteúdo ofensivo se, ao tomar conhecimento da lesão que determinada informação causa, não tomar as providências necessárias para a sua remoção”.
Em outro caso, de setembro de 2016, o ministro Ricardo Villas Bôas, no agravo no REsp 917.162/SP, julgou caso que envolvia a Google, proferindo em decisão que não se pode “impor ao provedor de internet que monitore o conteúdo produzido pelos usuários da rede. Não se pode exigir dos provedores que determinem o que é ou não apropriado para divulgação pública”.
Claro que essa inobrigatoriedade não impede que o provedor determine em seus termos de uso requisitos para a remoção de conteúdo. No caso da Wikipédia, a Wikimedia Foundation estabeleceu uma Política de Eliminação, na qual indica ao colaborador razões para deleções . Além disso, existem alguns filtros de edição que ajudam no combate ao vandalismo, impedindo a publicação de edições que possam conter termos ofensivos ou de cunho pejorativo, por exemplo. Mas, como tais filtros são programados para vetar determinadas palavras, os próprios colaboradores apontam diversas falhas, o que evidencia que apesar de útil, não é suficiente para coibir ações maliciosas.
Se, no entanto, a remoção do conteúdo foi determinada por ordem judicial, dispõe o artigo 20 da lei que sabendo o provedor as informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo, caberá a ele comunicar-lhe os motivos que o levaram a tomar tal medida, fornecendo informações necessárias para viabilizar o contraditório.
Em obras colaborativas como a Wikipédia, a identificação do autor, conforme já comentado ao longo de todo esse trabalho, pode se tornar uma tarefa demasiadamente complicada, mas não impossível. A verdade é que o anonimato nesses casos é relativo, tendo em vista que ao colaborar para a obra enciclopédica, o registro de acesso (endereço IP, data e hora) do usuário-autor é automaticamente gravado pelo site, ou seja, ele deixa ali a sua footprint.
Nesse sentido, e por fim, cabe fazer a diferenciação entre duas espécies de provedor de aplicações de internet: o com fins lucrativos e o outro sem fins lucrativos, tendo em vista que aquele primeiro é obrigado pelo artigo 15 da lei a manter os registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses. Por outro lado, o provedor que é constituído em pessoa natural ou jurídica sem sins lucrativos, como a Wikimedia Foundation, não está obrigado a guardar tais registros, salvo ordem judicial, que poderá obrigar por tempo certo, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado, conforme parágrafo 1° do artigo supramencionado.
5. Conclusão
Diante de todo o exposto e partindo-se da hipótese que a Wikimedia Foundation é um provedor de aplicações de internet, pode-se concluir que havendo publicação de conteúdos ofensivos nos artigos da Wikipédia, aquela além de não estar obrigada a guardar os registros de acesso dos usuários-autores, somente será responsabilizada em caso de omissão após uma ordem judicial específica para retirada de conteúdo ofensivo, ou seja, a mera notificação extrajudicial, muitas vezes por parte do próprio ofendido, não obrigará o provedor. Ficando claro, assim, que o Judiciário é a única instância legítima pra definir se um conteúdo é ilícito ou não.
Por conseguinte, em atendendo todos os termos da decisão judicial, a Wikimedia Foundation não se responsabilizará por dano eventualmente gerado pelo conteúdo ofensivo e, logo, não incidirá sobre ela qualquer dever de indenização.
Faça download do artigo completo com as referências bibliográficas: http://www.montaury.com.br/images/artigos/2019-10-09-responsabilidade-civil-wikipedia/responsabilidade-civil-wikipedia.pdf