Brasil precisa de um novo marco regulatório de Propriedade Intelectual?
Um dos pontos chave para o setor é dar autonomia orçamentária ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, conhecido pela demora na análise de patentes.
A norma brasileira que rege a Propriedade Intelectual e, consequentemente, a Propriedade Industrial completa 27 anos de vigência agora em 2023. Passadas quase três décadas, autoridades e especialistas discutem a possibilidade de enviar, nos próximos meses, o projeto de um novo marco regulatório que se adeque às mudanças desse período. Para os especialistas ouvidos pela LexLatin, a Lei 9.279/1996, que regula patentes, marcas, indicações geográficas e concorrência desleal atende, num primeiro momento, às chamadas demandas básicas para proteção dos direitos no país.
Um ponto chave na nossa lei, segundo os especialistas, é a tramitação dos processos de exame e concessão dos direitos de propriedade, que fica a cargo do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI. De acordo com os advogados da área, o processo legislativo no país é considerado muito moroso, principalmente na discussão e aprovação de um novo marco regulatório tão importante para os criadores brasileiros. Isso abre brechas para que os aperfeiçoamentos e atualizações nas normas relacionadas ao setor sejam implementados por vias administrativas, mediante atualização dos entendimentos e diretrizes de atuação do próprio INPI.
Criado em 1970, o INPI é uma autarquia federal atrelada ao Ministério da Economia e é fundamental na operacionalização e cumprimento da lei. Ele é responsável pelo aperfeiçoamento, disseminação e gestão do sistema brasileiro de concessão e garantia de direitos de propriedade intelectual para a indústria.
Segundo os especialistas, o instituto foi conhecido no passado pela demora no processo de análise de patentes, que, em muitos casos, ultrapassava duas décadas. Nos últimos anos, esse processo evoluiu, o que permitiu acelerar o exame de pedidos de marcas e reduziu, em parte, o chamado backlog de patentes.
“Ano passado, o INPI arrecadou mais de R$ 600 milhões. Ele devolve para a União pouco mais de R$ 500 milhões, fica com R$ 80 milhões para cobrir as despesas do correr do ano, mas não fica com uma verba para poder investir em novos equipamentos, sistemas, softwares, inteligência artificial e contratação de examinadores. Então, o instituto fica de mãos atadas. Os INPIs equivalentes do mundo inteiro evoluem e o nosso não. Ressalto que os examinadores que hoje estão lá fazem um esforço muito grande para manter tudo em ordem e num prazo relativamente curto para exame, mas a qualidade do exame cai e eles não têm como atender à demanda”, avalia Edgard Montaury Pimenta, sócio do Montaury Pimenta Machado & Vieira de Mello.
Para o advogado, ainda há muito espaço para que algumas melhorias sejam implementadas, a fim de dar maior aplicabilidade à própria Lei nº 9.279/1996 e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que regem a proteção da Propriedade Industrial, a exemplo do protocolo de Madri, que entrou em vigor no país em 1º de outubro de 2019.
“Hoje, o número de patentes depositadas no mundo inteiro cresce muito e no Brasil cai. Por quê? Porque o Brasil adquiriu uma fama de que uma patente demora 15, 16 anos para sair. Então todo mundo perde o interesse em depositar uma patente no Brasil”, afirma Montaury Pimenta.
No momento em que o setor industrial tenta se expandir e se adaptar às novas tecnologias, a Lei de Propriedade Industrial precisa se adaptar às mudanças das últimas décadas, o que é essencial para o desenvolvimento do país. De acordo com a Pesquisa de Inovação Semestral 2021: Indicadores Básicos, divulgada no fim do ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que 7 em cada 10 indústrias brasileiras de médio ou grande porte realizaram algum tipo de inovação no ano anterior.
Assuntos importantes
Um exemplo importante de regulação na área foi a alteração da Lei de Propriedade Industrial que aconteceu em 2021: a revogação do art. 229 – C da Lei 9.279/1996, que determinava a necessidade de permissão da Anvisa para concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos, mudança que foi celebrada pelo setor. Antes, havia uma discussão sobre a interferência e limites da Anvisa nesses casos.
Outro ponto importante que prejudicou o setor foi a revogação do art. 40, que determinava o período mínimo de validade da patente para 10 anos após a concessão, devido à demora na análise das patentes. Essa revogação, que aconteceu em 2016, após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.529, permitiu a perda do prazo adicional para as patentes, algo que foi alvo de críticas pelos especialistas em propriedade intelectual.
Mais recentemente, o INPI publicou novas diretrizes acerca do processo de averbação dos contratos de transferência de tecnologia, com intuito de facilitar e desburocratizar o processo. As medidas, que ainda não foram implementadas, incluem a flexibilização do uso de meios de assinatura eletrônica e digital. Hoje, o instituto aceita apenas formatos que sejam certificados pelo ICP-Brasil, o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, e exclui os demais existentes no mercado.
Outro assunto importante nessa discussão é como as redes sociais e a Internet mudaram o entendimento da PI no Brasil. De acordo com os especialistas, a possibilidade de proteção da Propriedade Industrial no mundo todo já era um assunto discutido antes da popularização das redes sociais. Ela é regulada por acordos internacionais, que buscam a uniformização das formas de proteção e variam conforme o “ativo intangível” protegido. Porém, o advento da internet e das redes sociais permitiu uma facilitação na troca de informações entre os escritórios de marcas e patentes, tornando tais acordos mais efetivos.
Uma mudança significativa para a Propriedade Intelectual e a Propriedade Industrial no mundo foi a implantação do Protocolo de Madrid. O Brasil se tornou parte do Protocolo em 2019.
“Pelo sistema, você deposita uma marca lá fora e aponta os vários países onde você quer que ela tenha validade. O objetivo maior foi baratear o custo para o empresário registrar a marca dele no exterior e ajudar nas exportações. Só que, por esse acordo, foram depositadas no Brasil 34.000 marcas estrangeiras, sem pagar ou contratar escritórios brasileiros, enquanto o Brasil mandou para fora pouco mais de 400 marcas, beneficiando mais o estrangeiro que o brasileiro”, explica Montaury Pimenta.
Outro marco regulatório internacional foi o Tratado de Cooperação de Patentes, ao qual o Brasil se vinculou em 1978. De acordo com os advogados de PI, ele viabilizou a busca e facilitou a análise de pedidos de patentes feita pelos escritórios de marcas e patentes nacionais.
É bom lembrar que as patentes têm como um dos requisitos para sua concessão a novidade e deve ser "constituída por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior”. Assim como o Tratado de Cooperação de Patentes possibilita a pesquisa de informações em um só lugar, há a facilitação da análise acerca do requisito da novidade.
Há ainda o Acordo de Haia, referente ao Registro Internacional dos Desenhos e Modelos Industriais. O Brasil passou a fazer parte do acordo agora, em 13 de fevereiro de 2023. Assim como nos demais tratados internacionais acerca da proteção de ativos intangíveis em vários países, a internet e as redes sociais auxiliaram na sua aplicação e cumprimento.
“Um dos aspectos práticos que mais se verifica tendo como causa as redes sociais é que, antes de seu advento, a troca de informações e o conhecimento de novas marcas geralmente se dava a partir da presença física em novo país. Porém, com a internet e as redes sociais, novas empresas e marcas podem se popularizar rapidamente, o que abre espaço para a má-fé de terceiros”, avalia Carolina Costa De Simoni Corrêa, do BVA Advogados.
A advogada explica que, caso o titular da marca em seu país de origem ainda não tenha pedidos de registro de marcas em outras regiões, é possível que terceiros, agindo de má-fé, depositem pedidos de registro idênticos ou similares àquela marca, fazendo necessária a utilização de outros mecanismos para a proteção da marca do verdadeiro titular – prática conhecida como sequestro de marca.
Por sua vez, as marcas de alto renome, às quais, na hipótese de deferimento, passam a ter proteção em todos os ramos de atividade, podem ter sua publicidade (reconhecimento pela maior parte da população brasileira), necessária para concessão e renovação do pedido, facilitada através da divulgação em redes sociais e na internet como um todo.
Outro ponto importante, segundo a especialista, é a influência nas marcas notoriamente conhecidas, conforme artigo 126 da LPI. Há ainda o elevado fluxo de violações de direitos autorais, assim como de exposição de informações confidenciais e segredos de negócio. “O alcance e rapidez de acesso gerados pela internet e redes sociais são enormes, ao passo que facilita os caminhos para se encontrar as pessoas violadoras destes direitos, mas também dificulta o controle por parte dos titulares de tais direitos”, diz a advogada.
Entraves
Existem vários entraves para a obtenção de uma patente, incluindo a pesquisa, elaboração e apresentação do pedido, acompanhamento e manutenção. No Brasil, são os estrangeiros que detêm o maior volume de patentes concedidas e depositadas. Além da demora na análise do INPI, uma das principais justificativas para esse intervalo de tempo em relação a outros países é a falta de investimento dos atores nacionais para pesquisa e desenvolvimento de produtos e processos inovadores, além da posterior proteção destes pela via da patente.
Seja para elaboração de uma análise de patenteabilidade e busca de anterioridade, seja para estruturação do pedido de patente conforme exigências legais e diretrizes do INPI, a parte interessada terá que gastar valores altos com advogados, técnicos e com as taxas federais do INPI para depósito da patente.
Na visão dos especialistas, os maiores entraves acontecem quando as partes detentoras de direitos de propriedade intelectual não se protegem corretamente, fato este que é muito visto, por exemplo, em empresas novas no mercado, como as startups de tecnologia.
“Como reflexo de sermos um dos países com mais usuários em redes sociais e com maior acesso à internet, há uma crescente no número de pessoas que estão se valendo dessas ferramentas como formato de trabalho, auferindo rendas consideráveis a partir da criação de conteúdos dos mais diversos formatos, a serem distribuídos online”, afirma Danniel Barbosa Rodrigues, sócio responsável pelas áreas de Propriedade Intelectual, Direito Publicitário e Práticas Tecnológicas do BVA Advogados.
Ele explica que tais práticas fizeram surgir um novo setor econômico, conhecido como Creator Economy, dado o volume de valor gerado para os envolvidos: os produtores de conteúdo e os consumidores, além de eventuais intermediários.
“Considerando estes dois cenários, vemos o desconhecimento acerca dos meios de proteção dos direitos de propriedade intelectual, sejam eles a partir de registros ou não. E isso figura como um grande entrave no momento para as partes detentoras destes direitos”, avalia o advogado.
Muitas das regulamentações aplicáveis a setores específicos de mercados ficam sob a ótica regulatória das agências, conselhos, autarquias federais, secretarias e ministérios competentes para fiscalizar e regular a atuação dos atores que integram estes setores.
Ainda que o Brasil possua atualizações relativamente recentes sobre Propriedade Intelectual, incluindo leis específicas que tratam de direitos autorais e programas de computador, o desafio nos próximos anos é fazer com que os poderes Legislativo e Judiciário acompanhem a velocidade das tecnologias e inovações que sequer existiam há poucos anos.