Suspensão de patentes vis-à-vis licenças compulsórias
Debate sobre suspensão ou quebra de patente pode virar obsoleto com avanço da vacinação.
Nestes dias sinistros de máscara, álcool gel e pandemia, fala-se e escreve-se bastante sobre a suspensão de direitos de patente e o licenciamento compulsório destas patentes como meios de aumentar a produção de vacinas. Supõe-se que estas medidas facilitariam o acesso às vacinas para todo mundo, e especialmente para os países do chamado terceiro mundo, do qual o Brasil faz parte. Se isto é realmente verdadeiro permanece questionável. Muitos acreditam que o acesso legal para todos os potenciais produtores e concorrentes dos titulares das patentes, aumentaria consideravelmente a produção das vacinas e também diminuiria o preço delas. Outros são da opinião que a chance de todos começarem a produzir as desejadas vacinas não aumentaria a quantidade de vacinas no mercado, porque o gargalo não estaria nos direitos patentários e sim no know-how de como produzir uma determinada vacina. Uma comparação seria um chef de gastronomia divulgar todas as suas receitas (já conhecidas e também as secretas) na internet. Isso não faria todos nós virarmos chefs e preparar os pratos tão bem como o chef que “inventou” várias destas receitas. E ainda outros acreditam que o elo mais fraco seria a logística, isto é, como providenciar os necessários insumos para a produção das vacinas, e a distribuição delas.
Independentemente da opinião apresentada em um artigo qualquer (e nestes dias tem havido uma “enxurrada” deles), percebi que os autores não fazem diferenciação entre a suspensão de uma patente e uma licença compulsória da dita patente (no Brasil esta última também é conhecida como “quebra de patente”). Muitos colunistas e escritores de artigos usam e tratam os dois termos como se fossem sinônimos, como se a suspensão de uma patente significasse a mesma coisa que uma quebra da mesma patente. Por exemplo, escrevem que a Índia e a África do Sul apresentaram uma proposta de acordo, sugerindo a quebra de patentes, à qual os Estados Unidos já aderiram. Também já li em um artigo que “Os negociadores dos países na OMC (Organização Mundial do Comércio) vão se reunir para tratar da quebra de patentes sobre vacinas contra a covid-19.” Com o devido respeito, mas isto não é correto e temos que distinguir entre a suspensão e a quebra de uma patente.
A diferença fundamental entre as duas situações legais é a de que no caso da suspensão de uma patente, ela para de existir por um certo tempo (determinado ou indeterminado), enquanto que no caso da quebra de uma patente, ela (a patente) continua existindo sem interrupção. Portanto, no primeiro caso (o da suspensão), em princípio nem precisaria de uma licença porque o direito da patente foi suspenso e qualquer empresa ou pessoa física teria o direito de copiar (ou mais bem estabelecido: “tentar copiar”) esta vacina, com ou sem a ajuda do titular da patente. Neste caso, me parece depender muito da boa vontade do titular da patente suspensa, se ele vai querer ajudar outra empresa a produzir a vacina inventada e patenteada, “entregando o ouro ao bandido”, e sob quais condições o dono da patente suspensa aceitaria contribuir com o seu know-how. Minha intuição me diz que alguém que acaba de ter seus direitos “confiscados”, não terá boa vontade de ajudar os outros a usar e lucrar deste “confisco”.
Em contraste à suspensão de uma patente, no caso de uma licença compulsória (ou a quebra de patente), a patente continua em vigor e o interessado, por uma decisão do Governo, obtém uma licença do titular para usar a invenção patenteada. Neste caso, querendo ou não, o proprietário da patente negocia com o interessado e chegam a um acordo sobre o tamanho dos royalties. O titular da patente pode ser obrigado contra a sua própria vontade a participar de tal negociação, mas pelo menos ele vai ganhar alguma porcentagem dos lucros adquiridos pelo licenciado. Inclusive, a licença compulsória está prevista na Seção III da Lei da Propriedade Industrial brasileira, e também no Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), do qual todos os países da OMC (Organização Mundial do Comércio) são membros (inclusive o Brasil). Ao contrário disso, a suspensão de uma patente não é prevista pelo TRIPS e não tem nenhuma base legal vigente.
Resumindo, todos que participam do debate sobre patentes de vacinas contra a covid 19, devem distinguir entre a suspensão de uma patente e a licença compulsória (ou quebra) da mesma patente. Agora, tendo dito isso, aos poucos estou percebendo que enquanto os políticos e os sábios do mundo inteiro discutem e debatem sobre a suspensão e/ou a quebra de patentes de vacinas contra a covid 19, o resto do mundo também não pára e não me surpreenderia se todo este debate acabasse virando supérfluo e obsoleto, pelo fato de que as empresas produtoras de vacinas estão cada vez mais aumentando a sua produção, e a concorrência entre elas impede preços abusivos.
Por exemplo, o Brasil está a cada mês comprando mais, e até produzindo mais, vacinas e, por exemplo, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, já anteciparam os cronogramas de vacinação. O prefeito do Rio de Janeiro Sr. Eduardo Paes disse recentemente acreditar que toda a população da cidade poderá receber ao menos uma dose da vacina contra a covid 19 até o início de setembro, um mês antes do previsto pelo calendário da Secretaria de Saúde.
O presidente Joe Biden anunciou que os Estados Unidos vão doar 500 milhões de doses, e o primeiro-ministro Boris Johnson do Reino Unido vai doar 100 milhões de doses para “países pobres”. Agora em junho, os países do G7 prometeram ofertar gratuitamente um bilhão de doses. Ademais, a comissão da União Europeia vai investir 130 milhões de Euros (para começar) em estudos, testes clínicos e produção de vacinas. Além disso, alguns países da União Europeia declararam individualmente intenções de também doarem vacinas para o terceiro mundo. Portanto, a minha esperança é a de que o problema da suficiência de vacinas contra covid 19 vai se resolver, enquanto que o debate sobre as patentes se alastra e acaba ficando redundante.
Fonte: Jota - Acesse aqui | Download PDF