Brasil tem aumento acelerado de patentes sob críticas de queda na qualidade
Durante governo de Jair Bolsonaro, INPI criou ‘combate ao backlog’ e reduziu filtros para conceder propriedade industrial.
O ritmo de concessões de patentes no Brasil se acelerou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), mas especialistas e técnicos sustentam que isso só se deu ao custo de uma queda no rigor das exigências, o que poderia gerar problemas de qualidade nos registros do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
A redução do tempo de concessão de patentes é uma das plataformas prometidas pelo vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), para sua gestão à frente do novo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços – com isso, o intuito é fomentar investimentos em pesquisa e tecnologia.
Alckmin ainda não anunciou quem deverá assumir a presidência da autarquia, após a exoneração de Cláudio Vilar Furtado, nomeado pelo último governo. A expectativa dos técnicos é que, pela primeira vez, um profissional da área seja indicado e que medidas do último mandato sejam revogadas.
Entre 2020 e 2021, houve um aumento de 31,7% nas patentes concedidas pelo INPI. Isso depois de já ter crescido 86,4% de 2019 a 2020, ano em a China foi o país que apresentou maior crescimento – que foi de 17%. Os dados foram levantados pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Wipo, na sigla em inglês).
A trajetória ascendente do número de patentes concedidas não é reflexo de mais depósitos, o que poderia refletir inovação e desenvolvimento tecnológico: no mesmo período, os novos pedidos variaram para baixo em cerca de 1%, em uma estagnação atribuída principalmente aos efeitos da pandemia de Covid-19. A maior parte dos pedidos são de empresas estrangeiras – dos 24 mil no período, apenas 5 mil são de nacionais, segundo a Wipo.
Além disso, entre as dez maiores agências – de países como China, Estados Unidos, Alemanha e Índia –, a brasileira teve o maior crescimento em concessões. Assim, o país ocupa a sétima posição em patentes concedidas, enquanto foi apenas a 11ª em pedidos depositados.
O movimento é creditado, sobretudo, a mudanças na atuação do INPI que visaram aumentar a produtividade e reduzir a fila de depósitos aguardando análise. Desde 2019, quando foi estabelecido a estratégia de redução e havia 132 mil demandas no backlog, a fila havia encurtado em 90% em 2022, segundo o INPI. E o tempo de decisão, contado a partir do pedido, foi calculado em 3,92 anos.
As principais mudanças trazidas pelo plano de “combate ao backlog de patentes”, como foi nomeado, foram a redução de filtros exigidos às pesquisas dos técnicos – em vez de fazer uma nova pesquisa, os técnicos agora podem apenas usar relatórios internacionais de busca já existentes para um determinado pedido de patente, desde que produzidos por órgãos de propriedade intelectual estrangeiros reconhecidos no Brasil. Também foram feitas alterações nas metas de remuneração variável dos servidores – os salários dependem de cumprir certo volume de demandas.
“Os técnicos foram incentivados a decidir mais rápido, o que os obriga a usar exames já feitos no exterior, por países com características diferentes. Nos Estados Unidos, há menos exigências sobre a qualidade da criação e abertura para patentear todo o tipo de matéria. O Brasil é mais rigoroso”, afirma o especialista em propriedade industrial Pedro Marcos Barbosa, professor de Direito Comercial da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro.
Esse impacto no mercado poderia gerar aumento de litígios envolvendo propriedade industrial mal concedida. “Ninguém é contra o INPI decidir com agilidade desde que isso não reduza a qualidade nem afete a soberania nacional, como tem acontecido. Com menos filtro, títulos que não deveriam ser concedidos acabam sendo e há uma inflação de patentes ruins”, avalia Barbosa.
Já o INPI afirma que o plano, responsável por uma redução expressiva no número de pedidos aguardando exame, não gerou qualquer prejuízo à qualidade das análises. Também diz que a independência dos examinadores foi mantida.
Além disso, a utilização de relatórios de exame realizados no exterior, como referência para as análises de pedidos de patentes idênticos depositados no Brasil, contribuiria para agilizar o exame. “Se um pedido de patente já tiver sido rejeitado em outro país por falta de novidade, por exemplo, o resultado será o mesmo no Brasil, pois o conceito de novidade é global, ou seja, envolve invenções em todo o mundo”, comentou em nota à reportagem.
Historicamente, o INPI é criticado pela lentidão em finalizar os processos de pedidos de patentes. Essa era a justificativa, inclusive, para acrescentar o tempo extra no período de exclusividade que as donas de tecnologia teriam direito, medida considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021.
Uma das consequências do dispositivo derrubado pelo STF era que, em média, as patentes brasileiras eram mantidas por mais tempo do que no cenário internacional. Às vezes, elas ultrapassavam os 20 anos de vigência máxima prevista na lei.
Por causa do aumento da concessão da exclusividade, também diminuiu a idade média das atuais patentes no mercado, passando de 15,3 anos em 2016 para 11,9 anos em 2021, segundo a Wipo. Antes, o Brasil tinha a média mais antiga e agora se aproxima da maior parte dos países com mais movimentações, entre nove anos (como Estados Unidos) e 11 anos (Espanha).
Na época do julgamento no STF, que teve relatoria do ministro Dias Toffoli, se avaliava que a autarquia federal tinha cerca de metade dos servidores necessários para as funções desempenhadas por ela – desde a administração até o exame dos pedidos depositados.
Desde então, não foram realizados novos concursos para contratação de servidores; o último ocorreu em 2014. O Brasil tem 304 examinadores ante 4 mil na União Europeia. Em comparação, seriam quase 80 novos pedidos por funcionário capacitado em 2021 no Brasil, frente a 47 na região.
“Os servidores ficaram muito sufocados, estão revalidando patentes concedidas no exterior e, muitas vezes, analisam pedidos de áreas que não seriam especializados. Assim, a qualidade pode ser questionada”, diz Laudicea da Silva Andrade, presidente da Associação dos Funcionários do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Afinpi).
As políticas empreendidas pela última gestão também seriam voltadas ao aumento da produtividade em detrimento da qualidade e apuro técnicos, diz carta da associação e do Sindicato Intermunicipal das Servidoras, Servidores, Empregadas e Empregados Públicos Federais dos Municípios do Rio de Janeiro, em janeiro. Esse direcionamento teria “provocado uma sensível piora na qualidade dos serviços prestados pelo INPI”.
A fragilização do corpo técnico prejudica a indústria. “Algumas divisões técnicas têm mais carência, como as de química, que inclui farmácia e biotecnologia e recebe casos mais complexos. Também estão críticas as frentes de telecomunicações e TI, em que há avanços tecnológicos muito rápidos, então é necessário ter agilidade”, diz Gabriela Salerno, sócia do escritório Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Melo, também coordenadora do Comitê de Patentes da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI).
Os problemas na área de propriedade industrial teriam potencial de afastar investimentos em ciência e desenvolvimento, incluindo acordos nesse sentido. “Apesar de não terem sido determinantes, as dificuldades do INPI estão entre as causas para o acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia”, exemplifica Barbosa, da PUC.
Para as indústrias que mais dependem do sistema de propriedade industrial, como a farmacêutica, um foco de tensão com o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) era a possibilidade de adoção de uma política favorável à abertura de patentes – porém, as falas do novo ministro da área reduziram o temor.
“Havia um receio de que poderia haver esse movimento, com a pressão da indústria de genéricos e as necessidades de atender o SUS. Mas não parece existir esse interesse do governo”, afirma Salerno, da ABPI.
Ela cita que o Brasil ganhou “injusta má fama” por ter havido uma licença compulsória envolvendo a Merck em 2007, quando não se chegou a acordo e o governo federal decidiu pagar menos do que o laboratório exigia por um anti-retroviral usado no tratamento do HIV – assim, o país poderia importar o medicamento genérico.
“Mais recentemente, as parcerias público-privadas avançaram e a própria licença compulsória, que seria a quebra de patentes, é o último recurso, demandando negociações de laboratórios com o governo”, completa Salerno.
Em 2023, conforme o Orçamento aprovado pelo Congresso em dezembro, estão alocados R$ 868,5 milhões para o INPI, incluindo gastos previstos com seguridade social. Em 2022, eram R$ 714,8 milhões. Em ambos os anos, os recursos destacados para investimentos giram em torno de R$ 2 milhões.